A música é, diz-se, o indizível por ser de inexprimível sentimento da consciência, ou do estado da alma, ou uma amargura tão extrema e lúcida que passa das palavras para ser apenas o ritmo e os sons e os timbres só pelos músicos cientes de harmonia e de composição imaginados. Mas, se assim fosse, eles só dos homens saberiam mover-se nos espaços que a humanidade abandonada encontra nos desertos de si. Começariam onde a expressão verbal não se articula por impossível .Viveriam sempre na fímbria estreita à beira da maldade e do absurdo, como que suspensos na solidão da morte sem palavras. Não é, portanto, a música o limite ilimitado dos limites da linguagem, para dizer -se o que não é dizível. Mas, se não é, que dizem(...), neste discreto passeio pelo tempo, os (...) instrumentos(...) no seu modo de criarem som? Tão terrível.Sufocante.Doce ou agridoce desconcerto hármonico.Que diz?Que diz?Neste contínuo de temas e andamentos, de tonalidades. o que se justifica?Que discutem eles? A sua mesma natureza de instrumentos e as combinações até ao infinito de um mecanismo abstracto do imaginar? Como pode uma coisa de sentimentos medonha, tão visionariamente séria e pensativa, ser irresponsável? Será que nos diz do aquém, do abaixo,do infra, do primário, do barbárico, do animal sem alma e sem razão? Será que todo este rigor tão belo é como que a estrutura prévia de que existimos ao pensar as coisas? E não a quintessência depurada de uma estrutura que se consentiu todo o significar a que as palavras vieram da analogia nominal e mágica até à consciência dos universais? Não há tristeza alguma nesta vida transformada em puro som, em homogénea outra realidade? Não é de angustia este rasgar melódico da consciência antes de criar-se humana? De que, portanto, vem esse triunfo que se precipita, contraditório, nas arcadas dos instrumentos conversando essências? E simples convenção? É artifício? Silêncio irresponsavel? Se há mistério ma grandeza ignota, e se há grandeza em se criar mistérios. esta música existe para perguntá-lo. E porque se interroga e não a nós, ela se justifica e justifica o proprio interrogar com que se afirma não quintessência ela, mas raiz profunda daquilo que será provável ou possível como consciência, quando houver palavras ou quando puramente inúteis forem.
(Jorge de Sena, in Arte de Música, 1968)